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Capa do livro
Capa do livro

Fiz a revisão das ótimas narrativas de Náufragos, de Fernando Molica. O livro foi lançado pela editora Malê em 2023 e indicado ao prêmio Jabuti na categoria Conto.


Fernando Molica e Thaís Velloso na Cerimônia do Prêmio Jabuti
Fernando Molica e Thaís Velloso na Cerimônia do Prêmio Jabuti

 
Foto: Thaís Velloso
Foto: Thaís Velloso

Elefantes no céu de Piedade, romance de Fernando Molica, foi lançado pela editora Patuá em 2021. Participei do processo de revisão do livro e escrevi uma resenha sobre a obra, reproduzida aqui a quem possa interessar:


Quando criança, andava pelas ruas de Piedade sem imaginar que seus nomes poderiam ser mencionados em uma obra de ficção. No colégio, eu e meus amigos estávamos lendo, para a prova do bimestre, um livro que falava da Delfim Moreira, da Ataulfo de Paiva, de jovens, bem mais velhos que nós, andando de bicicleta pelo Leblon. Aquele cenário era muito diferente da minha realidade, e o protagonismo do bairro da Zona Sul na narrativa significava para mim que a Avenida Suburbana não tinha importância alguma em comparação com a Delfim Moreira. Eu, uma criança do subúrbio, estudando em um colégio da Zona Norte com um livro que discorria apenas sobre o Leblon, constatava que “o mundo passava longe de Piedade”, como diz o narrador do romance de Fernando Molica.



Essa distância pressupunha a ideia de cidade partida: do lado de lá estavam aqueles que poderiam protagonizar livros; do lado de cá, a gente, que deveria aprender com eles para conseguir estar do outro lado um dia. Do mesmo modo, tal condição implicava outra inferioridade, cuja explicação está na fala que Francisco, o narrador, recupera da avó: “Política, dizia, era para os grandões, não para nós, que somos pobres, moramos no subúrbio, não temos conhecimento, não temos estudo, eles é que sabem, melhor ficarmos quietos para não aguentarmos as consequências, a corda arrebenta sempre do lado mais fraco”. E a lógica era – ainda é, em muitos casos – mesmo essa. Da convivência com meus avós e tios, por exemplo, que moravam também em Piedade praticamente (Quintino fica ao lado, afinal), não me lembro de qualquer comentário político, qualquer menção à época da ditadura no país.


A regra do “eles é que sabem” demonstra que o distanciamento em relação a temas políticos acaba influenciando certa simpatia pelo poder que busca a ordem, o progresso, muitas vezes confundidos com alguma melhoria na vida de uma família de classe média do subúrbio carioca: “Ditadura, como assim? Governo que mata as pessoas? Não, não é possível, você deve estar exagerando […]. Aqui em casa mesmo a mamãe fala que agora temos ordem, que os militares acabaram com a bagunça, que tudo melhorou. A loja do papai vive cheia de clientes […]. Ele conseguiu comprar esta casa, comprou o Opala…”. A visão do menino é questionada pelo primo universitário, com quem estava convivendo havia poucos dias: “Francisco, por favor, você acha que o Brasil ficou bom porque o tio comprou um Opala? Só uns poucos melhoraram de vida, primo”.


A proximidade com o primo “subversivo” faz com que Francisco comece a vislumbrar outra perspectiva sobre o regime. Somado a demais acontecimentos familiares, é esse contato afetivo, marcado pelo fato de considerar Cacá “um cara legal”, que passa a proporcionar a ele alguns questionamentos: “Talvez os comentários de Cacá sobre tortura e abusos não fossem tão mentirosos assim”; “Pela primeira vez, achava que poderia não haver um lado sempre certo nas brincadeiras de polícia e ladrão”. Tal proximidade, no entanto, não era comum em Piedade (“o caso de nossa família era excepcional, perigoso”). Ao falar de seu bairro, o narrador revela uma sintomática característica da nossa cidade, do nosso país: estar ou manter-se afastado dos acontecimentos mascarava para muitas pessoas a realidade e, consequentemente, contribuía para que elas apoiassem a ordem, repetissem chavões, engrossassem o coro, assim como acontece hoje em dia.


Por causa desse diálogo com a atualidade, mas não só por isso, “Elefantes no céu de Piedade” vale muito ser lido. É uma obra que ajuda a elucidar questões ainda confusas para nós, como o apoio de grande parcela social a governos autoritários, desumanos, cruéis com essa mesma população que lhes é favorável. Muitas vezes, a cabeça confusa de Francisco – reflexo do pensamento dos pais -, que confunde a troca do fusca pelo opala com o progresso social da nação, é a cabeça do cidadão que acompanha de longe, ou simplesmente não acompanha, os rumos políticos do país.


Ao final do romance, o narrador afirma que “memória é também construção”, mas em outro momento alerta: “É preciso ter cuidado com a construção da memória que diz respeito à história coletiva”. Enquanto é possível preencher lacunas da memória individual a partir do imaginário, uma vez que o tempo faz com que determinadas lembranças pessoais fiquem esparsas ou contraditórias, não podemos fazer o mesmo com a memória coletiva. Nesse sentido, cabe registrar o que Beatriz Sarlo comenta em seu livro Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva: “A memória foi o dever da Argentina posterior à ditadura e o é na maioria dos países da América Latina […]. A ideia do ‘nunca mais’ se sustenta no fato de que sabemos a que nos referimos quando desejamos que isso não se repita […]. Os atos de memória foram uma peça central na transição democrática […]. Nenhuma condenação teria sido possível se esses atos de memória, manifestados nos relatos de testemunhas e vítimas, não tivessem existido”.


Diante disso, “Elefantes no céu de Piedade”, ao abordar a perspectiva de uma família de classe média do subúrbio carioca a respeito da ditadura brasileira, nos faz refletir sobre a construção dessa memória coletiva e, ao mesmo tempo, salienta como é importante conhecer a história, esta escrita com inicial maiúscula, para termos consciência do significado de “nunca mais”. Não à toa Francisco passa a questionar certos pensamentos somente após conviver com alguém que posteriormente sofreria nas mãos das autoridades; não à toa Eneida, sua mãe, esboça desconfiança dessas mesmas autoridades apenas quando testemunha a forma como o irmão foi preso (“era a primeira vez que eu via minha mãe manifestar algum tipo de questionamento em relação ao governo”).


A crença na ideia de que “falar de política só traz problema, isso é com o governo, não é com a gente”, que paira sobre Piedade – representação metonímica de muitos lugares do Brasil -, permite que elefantes sobrevoem o céu daquele bairro, de outras regiões, de um país inteiro e, ainda assim, sejam ignorados. O problema, como a narrativa atesta, é que uma hora acabamos sentindo o grande peso que passa a assolar nossas vidas.

 

Fiz a revisão do romance Espiral, de Dau Bastos, a convite do autor. O livro foi lançado em 2017.


Lançamento do romance na livraria Leonardo da Vinci
Lançamento do romance na livraria Leonardo da Vinci

Fui orientanda do Dau a partir do meu último ano na graduação, quando o procurei para orientar minha monografia sobre as crônicas de Machado. A pesquisa resultou em uma iniciação científica antes da monografia, sugestão que foi essencial pra mim naquele momento. Depois disso, ele me chamou pra fazer parte do grupo de revisores do Fórum de Literatura Brasileira Contemporânea da UFRJ, do qual participei por seis anos. Me formei e engatei no mestrado, numa contínua pesquisa machadiana, e mais uma vez com ele. O convite para revisar seu romance, gesto de confiança e reconhecimento, me deixou grata e feliz.

 
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© Todos os textos são de autoria de Thaís Velloso, exceto quando indicado pela autora. 

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